06/09/2011 PRIMEIRA TURMA
HABEAS CORPUS 107.801 SÃO PAULO
V O T O – V I S T A
PENAL.
HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A
TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA
DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA. ACTIO LIBERA IN
CAUSA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO. REVALORAÇÃO DOS
FATOS QUE NÃO SE CONFUNDE COM REVOLVIMENTO DO CONJUNTO
FÁTICO-PROBATÓRIO. ORDEM CONCEDIDA.
1.
A classificação do delito como doloso, implicando pena sobremodo
onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o
procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of
law, é reformável pela via do habeas corpus.
2.
O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302,
caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como
homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica
eventual.
3. A embriaguez
alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a
preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o
ilícito ou assumir o risco de produzi-lo.
4.
In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de
decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o
paciente tenha ingerido bebidas alcoólicas no afã de produzir o
resultado morte.
5. A
doutrina clássica revela a virtude da sua justeza ao asseverar que “O
anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava resolviam muito
melhor o assunto. O art. 31 e §§
1º e 2º estabeleciam: 'A embriaguez pelo álcool ou substância de
efeitos análogos, ainda quando completa, não exclui a responsabilidade,
salvo quando fortuita ou involuntária. § 1º. Se a embriaguez foi
intencionalmente procurada para a prática do crime, o agente é punível a
título de dolo; § 2º. Se, embora não preordenada, a embriaguez é
voluntária e completa e o agente previu e podia prever que, em tal
estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de
culpa, se a este título é punível o fato”. (Guilherme Souza Nucci,
Código Penal Comentado, 5. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: RT,
2005, p. 243)
6. A
revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias inferiores não se
confunde com o revolvimento do conjunto fáticoprobatório. Precedentes:
HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/6/2011; RE 99.590, Rel. Min.
Alfredo Buzaid, DJ de 6/4/1984; RE 122.011, relator o Ministro Moreira
Alves,
7. A Lei nº
11.275/06 não se aplica ao caso em exame, porquanto não se revela Lex
mitior, mas, ao revés, previu causa de aumento de pena para o crime sub
judice e em tese praticado, configurado como homicídio culposo na
direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB).
8.
Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente
para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput,
do CTB), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de
Guariba/SP.
O SENHOR
MINISTRO LUIZ FUX (RELATOR): Trata-se de habeas corpus substitutivo de
recurso ordinário impetrado contra acórdão denegatório de idêntica
medida, sintetizado na seguinte ementa, in verbis:
HABEAS
CORPUS . TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO
DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE
VEÍCULO AUTOMOTOR. EXAME DE ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. ANÁLISE
APROFUNDADA DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA
DO CONSELHO DE SENTENÇA. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM
DENEGADA.
1. A decisão de
pronúncia encerra simples juízo de admissibilidade da acusação,
exigindo o ordenamento jurídico somente o exame da ocorrência do crime e
de indícios de sua autoria, não se demandando aqueles requisitos de
certeza necessários à prolação de um édito condenatório, sendo que as
dúvidas, nessa fase processual, resolvem-se contra o réu e a favor da
sociedade. É o mandamento do art. 408 e atual art. 413 do Código
Processual Penal.
2. O
exame da insurgência exposta na impetração, no que tange à
desclassificação do delito, demanda aprofundado revolvimento do conjunto
probatório - vedado na via estreita do mandamus -, já que para que seja
reconhecida a culpa consciente ou o dolo eventual, faz-se necessária
uma análise minuciosa da conduta do paciente.
3.
Afirmar se agiu com dolo eventual ou culpa consciente é tarefa que deve
ser analisada pela Corte Popular, juiz natural da causa, de acordo com a
narrativa dos fatos constantes da denúncia e com o auxílio do conjunto
fático-probatório produzido no âmbito do devido processo legal, o que
impede a análise do elemento subjetivo de sua conduta por este
Sodalício.
4. Na
hipótese, tendo a decisão impugnada asseverado que há provas da
ocorrência do delito e indícios da autoria assestada ao paciente e tendo
a provisional trazido a descrição da conduta com a indicação da
existência de crime doloso contra a vida, sem proceder à qualquer juízo
de valor acerca da sua motivação, não se evidencia o alegado
constrangimento ilegal suportado em decorrência da pronúncia a título de
dolo eventual, que depende de profundo estudo das provas, as quais
deverão ser oportunamente sopesadas pelo Juízo competente no âmbito do
procedimento próprio, dotado de cognição exauriente.
5. Ordem denegada.
Segundo
consta nos autos, o paciente foi denunciado pela prática de homicídio
qualificado (art. 121, 2º, IV c/c art. 18, I, segunda parte do Código
Penal), porquanto teria, na direção de veículo automotor e sob o efeito
de bebidas alcoólicas, atropelado a vítima, que veio a óbito.
Pronunciado
o paciente pelo delito de homicídio doloso, interpôs recurso em sentido
estrito, que restou desprovido, ensejando a impetração de habeas corpus
no Superior Tribunal de Justiça, alfim denegado.
Nesta
impetração, sustenta-se que o fato imputado ao paciente deve ser
tipificado como homicídio culposo, uma vez que aplicável ao homicídio
praticado em direção de veículo automotor por agente sob o efeito de
bebidas alcoólicas o art. 302, inciso V, do CTB, na redação da Lei nº
11.275/06, in verbis:
Art. 302. ................
Parágrafo
único. No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a
pena é aumentada de um terço à metade, se o agente:
[...]
V -
estiver sob a influência de álcool ou substância tóxica ou entorpecente
de efeitos análogos. (Incluído pela Lei nº 11.275, de 2006) (Revogado
pela Lei nº 11.705, de 2008)
Alega que
a Lei 11.275/06 entrou em vigor após a ocorrência do fato (19/05/2002),
sendo aplicável ao caso sub judice mesmo que tenha sido revogada, posto
ser mais benéfica (artigo 5º, inciso XL da Constituição da República e
artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal).
Argumenta
que a referida lei “atribui à embriaguez ao volante a condição de causa
de aumento de pena em sede homicídio de trânsito culposo,
impossibilitando que o estado ébrio seja considerado como justificativa
do reconhecimento de dolo eventual, o que afasta a incidência do artigo
121 do Código Penal”.
Afirma
que as instâncias inferiores reconheceram a ausência do “animus
necandi”, de modo que, se paciente não anuiu nem aceitou o risco de
produzir o resultado morte, deveria ser reconhecida a ocorrência de
culpa consciente, e não de dolo eventual.
Aduz que a
análise do presente writ não requer revolvimento de fatos e provas,
como assentado pelo STJ, mas sim de revaloração do acervo probatório,
sendo certo que não se pode atribuir automaticamente o dolo quando se
trata de homicídio de trânsito decorrente de embriaguez.
Requer a
desclassificação da conduta para o tipo do art. 302, “caput” da Lei n.º
9.503/97, “ainda que com o acréscimo previsto no inciso V do parágrafo
único do mesmo dispositivo legal”, determinando-se a remessa dos autos à
Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP.
A liminar restou indeferida pela Relatora.
O parecer do MPF foi pelo indeferimento do writ.
Na assentada em que teve início o julgamento, a Relatora votou pela denegação da ordem.
É o breve relato. Passo a votar.
Cuida-se
de habeas corpus em que se pretende a desclassificação da conduta
imputada ao paciente para o homicídio culposo previsto no Código de
Trânsito Brasileiro (art. 302 do CTB).
Com
efeito, dispõe o artigo 419 do CPP que o juiz remeterá os autos ao órgão
competente quando se convencer da existência de crime diverso e não for
competente para o julgamento. Tal desclassificação, se omitida
indevidamente, importa em graves consequências para a defesa, deslocando
o processo ao Júri, cujo julgamento é sabidamente atécnico e, às vezes,
até mesmo apaixonado, a depender do local onde ele ocorra.
Essas
implicações potencializam-se ainda mais no caso sub judice, em que as
diferenças de penas entre um e outro crime são gritantes. Para se ter
uma ideia, a diferença da entre as penas mínimas do crime de homicídio
qualificado (12 anos) e do homicídio culposo em direção de veículo
automotor (2 anos) é de 10 anos.
Outrossim,
observa-se atualmente, de um modo geral, seja nas acusações seja nas
decisões judiciais, certa banalização no sentido de atribuir-se aos
delitos de trânsito o dolo eventual, o que se refletiu no caso em exame.
No
entanto, reconhecido na sentença de pronúncia e no acórdão que a
confirmou que o paciente cometera o fato em estado de embriaguez
alcoólica, a sua responsabilização a título doloso somente pode ocorrer
mediante a comprovação de que ele embebedou-se para praticar o ilícito
ou assumindo o risco de praticá-lo. A aplicação da teoria da actio
libera in causa somente é admissível para justificar a imputação de
crime doloso em se tratando de embriaguez preordenada, sob pena de
incorrer em inadmissível responsabilidade penal objetiva. Nesse sentido,
confira-se a doutrina de Guilherme de Souza Nucci:
18. A
teoria da actio libera in causa: com base no princípio de que a “causa
da causa também é a causa do que foi causado”, leva-se em consideração
que, no momento de se embriagar, o agente pode ter agido dolosa ou
culposamente, projetando-se esse elemento subjetivo para o instante da
conduta criminosa. Assim, quando o indivíduo, resolvendo encorajar-se
para cometer um delito qualquer, ingere substância entorpecente para
colocar-se, propositadamente, em situação de inimputabilidade, deve
responder pelo que fez dolosamente – afinal, o elemento subjetivo estava
presente no ato de ingerir a bebida ou a droga. Por outro lado, quando o
agente, sabendo que irá dirigir um veículo, por exemplo, bebe antes de
fazêlo, precipita a sua imprudência para o momento em que atropelar e
matar um passante. Responderá por homicídio culposo, pois o elemento
subjetivo do crime projeta-se no momento de ingestão da bebida para o
instante do delito.
Desenvolve
a Exposição de Motivos da Parte Geral do Código Penal de 1940 a
seguinte concepção: “Ao resolver o problema da embriaguez (pelo álcool
ou substância de efeitos análogos), do ponto de vista da
responsabilidade penal, o projeto aceitou em toda a sua plenitude a
teoria da actio libera in causa ad libertatem relata, que, modernamente,
não se limita ao estado de inconsciência preordenado, mas se estende a
todos os casos em que o agente se deixou arrastar ao estado de
inconsciência” (nessa parte não alterada pela atual Exposição de
Motivos).
Com a devida
vênia, nem todos os casos em que o agente “deixou-se arrastar” ao estado
de inconsciência podem configurar uma hipótese de “dolo ou culpa” a ser
arremessada para o momento da conduta delituosa. Há pessoas que bebem
por beber, sem a menor previsibilidade de que cometeriam crimes no
estado de embriaguez completa, de foma que não é cabível a aplicação da
teoria da actio libera in causa nesses casos. De outra parte, se
suprimirmos a responsabilidade penal dos agentes que, embriagados
totalmente, matam, roubam ou estupram alguém, estaremos alargando,
indevidamente, a impunidad e, privilegiando o injusto diante do justo.
No prisma de que a teoria da actio libera in causa (“ação livre na sua
origem”) somente é cabível nos delitos preordenados (em se tratando de
dolo) ou com flagrante imprudência no momento de beber estão os
magistérios de Frederico Marques, Magalhães Noronha, Jair Leonardo
Lopes, Jürgen Baumann, Paulo José da Costa Júnior, Munhoz Neto, entre
outros, com os quais concordamos plenamente. Destacamos a
responsabilidade penal objetiva que ainda impregna o contexto da
embriaguez voluntária ou culposa, tratando-as como se fossem iguais à
preordenada. Se é verdade que em relação a esta o Código prevê uma
agravação (art. 56, II, c) também é certo que considera todas num mesmo
plano para negar a isenção de pena. O anteprojeto Hungria e os modelos
em que se inspirava, resolviam muito melhor o assunto. O art. 31 e §§ 1º
e 2º estabeleciam: 'A embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos
análogos, ainda quando completa, não exclui a responsabilidade, salvo
quando fortuita ou involuntária. § 1º. Se a embriaguez foi
intencionalmente procurada para a prática do crime, o agente é punível a
título de dolo; § 2º. Se, embora não preordenada, a embriaguez é
voluntária e completa e o agente previu e podia prever que, em tal
estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de
culpa, se a este título é punível o fato”. [...] (Código Penal
Comentado, 5. ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: RT, 2005, p. 243 –
grifos adicionados)
Na mesma esteira de entendimento, a lição de Rogério Greco:
Pela
definição de actio libera in causa fornecida por Narcélio de Queiroz,
percebemos que o agente pode embriagar-se preordenadamente, com a
finalidade de praticar uma infração penal, oportunidade em que, se vier a
cometê-la, o resultado lhe será imputado a título de dolo, sendo,
ainda, agravada a sua pena em razão da existência da circunstância
agravante prevista no art. 61, II, “I”, do Código Penal, ou, querendo ou
não se embriagar, mas sem a finalidade de praticar qualquer infração
penal, se o agente vier a causar um resultado lesivo, este lhe poderá
ser atribuído, geralmente, a título de culpa. (Curso de Direito Penal:
parte geral, 5. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005, p.455 - grifos
adicionados)
Ademais, a
produção de um resultado lesivo causada pela violação de um dever
objetivo de cuidado reúne condições suficientes para a configuração de
crime culposo, tornando despicienda a alusão à teoria da actio libera in
causa. Confira-se a doutrina de Zaffaroni e Pierangeli:
Vimos a
estrutura do tipo culposo, e ela revela-nos claramente que quando aquele
que se coloca em estado ou situação de inculpabilidade viola um dever
de cuidado, está preenchendo os requisitos da tipicidade culposa, e não
há necessidade de recorrer-se à teoria da actio libera in causa.
Aquele
que bebe até embriagar-se, sem saber que efeitos o álcool causa sobre
seu psiquismo, ou quem “para experimentar”, ingere um psicofármaco cujos
efeitos desconhece, ou quem injuria outro sem considerar que pode ele
ter uma reação violenta, está, obviamente, violando um dever de cuidado.
Se sua conduta violadora do dever de cuidado, em qualquer desses casos,
causa uma lesão a alguém, teremos perfeitamente configurada a
tipicidade culposa, sem que seja necessário recorrer à teoria da actio
libera in causa.Isto porque a
conduta típica violadora do dever de cuidado é, precisamente, a de
beber, ingerir o psicofármaco e injuriar, respectivamente, e, no momento
de cometer este injusto culposo, o sujeito encontrava-se em estado e em
situação de culpabilidade, pelo que é perfeitamente reprovável. Consequentemente,
não tem sentido falar de actio libera in causa culposa, devendo o
âmbito dessa teoria reduzir-se ao dolo. (Manual de Direito Penal, Parte
Geral, v. 1, 9. ed – São Paulo: RT, 2011, p. 460 – grifo adicionado)
In casu,
segundo os termos em que a denúncia foi formalizada, tem-se a presunção
de que o agente assumiu o risco de causar a morte da vítima em virtude
de estar embriagado. Eis o teor da peça acusatória:
Consta
dos inclusos autos de inquérito policial que, no dia 19 de maio de
2.002, por volta das 07h00, no cruzamento da Rua Presidente Vargas com a
Rua 13 de Maio , na cidade de Pradópolis, nesta comarca, L. A. M.,
qualificado a fls. 68/71, agindo com animo homicida e mediante o emprego
de recurso que dificultou a defesa da vítima, produziu em Eliete Alves
de Oliveira os ferimentos descritos no exame necrosc6pico de fls. 31 ,
os quais foram a causa eficiente de sua morte.
Segundo
se apurou, o indiciado conduzia a camioneta GM D-20, placas BZC-2488, de
Pradópolis/SP, pelo local dos fatos, em estado de embriaguez alcoólica
(fls. 32), quando veio a atropelar a vítima, que por ali caminhava e, em
decorrência dos graves ferimentos provocados por tal conduta, veio a
falecer. Em razão de sua embriaguez alcoólica, o indiciado assumiu o
risco de causar a morte da vítima ao conduzir um veículo automotor em
via pública.
O crime foi
cometido com o emprego de recurso que dificultou a defesa da vítima,
senhora que praticava caminhadas por recomendações medicas e andava
pacificamente pelas ruas de Pradópolis e, atingida de surpresa, não teve
chances de esboçar qualquer reação de defesa ou mesmo de esquivar-se do
veículo automotor. [...]
(grifo adicionado)
Mediante
esta mesma presunção (embriaguez – assunção do risco), o paciente foi
pronunciado por homicídio doloso qualificado pelo meio que impossibilite
a defesa da vítima (art. 121, § 2º, IV c/c art. 18, I, segunda parte,
ambos do CP). Confira-se o trecho da sentença pertinente ao tema:
[...]
Não se
pode recusar a constatação, evidenciada pelo exame de embriaguez
alcoólica que o acusado, na data dos fatos, conduzia o veículo
embriagado.
Do exame
de fls. 35 constou expressamente, que o acusado apresentava sintomas
indicativos de que ingeriu bebida alcoólica e em consequência estava
embriagado, colocando em risco, no estado em que se encontrava, em
perigo, a segurança própria ou alheia. Conclui-se que o acusado estava
em estado de embriaguez alcoólica.
Assim,
mostra-se absolutamente correta a conclusão no sentido de que o acusado,
pelo meio e modo como agiu, assumiu o risco de produzir o resultado
morte da vítima, assentindo no resultado.
[...]
(fls. 31 e 32).
O
Tribunal de Justiça, por sua vez, acrescentou, em julgamento de recurso
da defesa, dado não constante na sentença (velocidade) e que, portanto
não poderia ser considerado para agravar a situação do paciente. Além
disso, também manifestou convencimento no sentido de o dolo eventual
presumir-se da direção do veículo sob o efeito de bebidas alcoólicas,
mesmo rechaçando expressamente a intenção de matar, in litteris:
Com
efeito, é bem verdade que não restou comprovado que o réu tinha intenção
de matar a vítima; porém, considerando que conduzia seu veículo
embriagado e em velocidade incompatível com a localidade, entendo que
não se importava com as possíveis consequências, o que evidentemente,
caracteriza dolo eventual. Assim, havendo indícios de existência de
crime doloso contra a vida, entendo acertada a decisão de pronúncia"
(fls. 45). (grifo adicionado)
Consectariamente,
observa-se ter havido mera presunção acerca do elemento volitivo
imprescindível para configurar-se o dolo, não se atentando, pois, para a
distinção entre dolo eventual e culpa consciente. Em ambas as situações
ocorre a representação do resultado pelo agente.
No
entanto, na culpa consciente este pratica o fato acreditando que o
resultado lesivo, embora previsto por ele, não ocorrerá. Nelson Hungria
traça com nitidez a diferença entre as duas situações mentais, in
litteris:
Há, entre
elas, é certo, um traço comum: a previsão do resultado antijurídico;
mas, enquanto no dolo eventual o agente presta a anuência ao advento
desse resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo, ao invés de
renunciar à ação, na culpa consciente, ao contrário, o agente repele,
embora inconsideradamente, a hipótese de supereminência do resultado e
empreende a ação na esperança ou persuasão de que este não ocorrerá”
(Comentários ao Código Penal, 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, v.
1., p. 116-117)
No mesmo sentido os ensinamentos de Heleno Cláudio Fragoso:
[...]
assumir o risco significa prever o resultado como provável ou possível e
aceitar ou consentir sua superveniência. O dolo eventual aproxima-se da
culpa consciente e dela se distingue porque nesta o agente, embora
prevendo o resultado como possível ou provável não o aceita nem
consente. Não basta, portanto, a dúvida, ou seja, a incerteza a respeito
de certo evento, sem implicação de natureza volitiva. O dolo eventual
põe-se na perspectiva da vontade, e não da representação, pois, esta
última, pode conduzir também a culpa consciente. Nesse sentido já
decidiu o STF (RTJ, 351/282). A rigor, a expressão 'assumir o risco' é
imprecisa, para distinguir o dolo eventual da culpa consciente e deve
ser interpretada em consonância com a teoria do consentimento. (Lições
de Direito Penal – parte geral, Rio de Janeiro: Forense, 2006, 17. ed.,
p. 173 – grifo adicionado)
Portanto,
do exame descrição dos fatos empregada nas razões de decidir da
sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente
tenha ingerido bebidas alcoólicas consentindo em que produziria o
resultado, o qual pode até ter previsto, mas não assentiu que ocorresse.
Vale
ressaltar que o exame da presente questão não se situa no âmbito do
revolvimento do conjunto fático-probatório, mas importa, isto sim, em
revaloração dos fatos postos nas instâncias inferiores, o que é viável
em sede de habeas corpus. Confiram-se, nesse sentido, os seguintes
precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/6/2011; RE 99.590,
Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de 6/4/1984; RE 122.011, relator o Ministro
Moreira Alves, DJ de 17/8/1990.
Por fim,
vale ressaltar que a Lei nº 11.275/06 não se aplica ao caso em exame,
porquanto não se mostrou mais favorável ao paciente. Ao contrário,
previu causa de aumento de pena para o crime em tese por ele praticado,
de homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput,
do CTB).
Ex
positis, voto pela concessão da ordem para desclassificar a conduta
imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de veículo
automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à
Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP.
É como voto.