O ministro Celso de Mello, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 514/PI (Informativo 499/2008),
analisou o significado de bloco de constitucionalidade para efeito de
fiscalização normativa abstrata e, por conseguinte, da admissibilidade,
ou não, da própria ação direta (ou da ação declaratória de
constitucionalidade).
EMENTA: FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA.
REVOGAÇÃO TÁCITA DE UMA DAS NORMAS LEGAIS IMPUGNADAS E MODIFICAÇÃO SUBSTANCIAL
DO PARÂMETRO DE CONTROLE INVOCADO EM RELAÇÃO AOS DEMAIS
DIPLOMAS LEGISLATIVOS QUESTIONADOS. HIPÓTESES DE PREJUDICIALIDADE DA AÇÃO DIRETA,
QUANDO SUPERVENIENTES AO SEU AJUIZAMENTO.
A NOÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE/INCONSTITUCIONALIDADE
COMO CONCEITO DE RELAÇÃO. A QUESTÃO PERTINENTE AO BLOCO DE
CONSTITUCIONALIDADE. POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS DIVERGENTES EM TORNO DO SEU
CONTEÚDO. O SIGNIFICADO DO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE COMO FATOR DETERMINANTE
DO CARÁTER CONSTITUCIONAL, OU NÃO, DOS ATOS ESTATAIS. IMPUGNAÇÃO GENÉRICA
DEDUZIDA EM SEDE DE
CONTROLE ABSTRATO. INADMISSIBILIDADE. DEVER PROCESSUAL, QUE
INCUMBE AO AUTOR DA AÇÃO DIRETA, DE FUNDAMENTAR, ADEQUADAMENTE, A PRETENSÃO DE
INCONSTITUCIONALIDADE. SITUAÇÃO QUE LEGITIMA O NÃO-CONHECIMENTO DA AÇÃO DIRETA.
PRECEDENTES.
- A revogação superveniente do ato estatal
impugnado, ainda que tácita, faz instaurar situação de prejudicialidade, que
provoca a extinção anômala do processo de fiscalização abstrata de
constitucionalidade. Precedentes.
- Não se conhece da ação direta, sempre que a
impugnação nela veiculada revelar-se destituída de fundamentação jurídica ou
desprovida de motivação idônea e adequada. Em sede de fiscalização normativa
abstrata, não se admite impugnação meramente genérica de inconstitucionalidade,
tanto quanto não se permite que a alegação de contrariedade ao texto
constitucional se apóie em argumentos superficiais ou em fundamentação
insuficiente. Lei nº 9.868/99, art. 4º, “caput”. Precedentes.
- A definição do significado de bloco de
constitucionalidade – independentemente da abrangência material que se lhe
reconheça (a Constituição escrita ou a ordem constitucional global) –
reveste-se de fundamental importância no processo de fiscalização normativa
abstrata, pois a exata qualificação conceitual dessa categoria jurídica
projeta-se como fator determinante do caráter constitucional, ou não, dos atos
estatais contestados em face da Carta Política.
- A superveniente alteração/supressão das
normas, valores e princípios que se subsumem à noção conceitual de bloco de
constitucionalidade, por importar em descaracterização do parâmetro
constitucional de confronto, faz instaurar, em sede de controle abstrato,
situação configuradora de prejudicialidade da ação direta, legitimando, desse
modo – ainda que mediante decisão monocrática do Relator da causa (RTJ 139/67)
-, a extinção anômala do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade.
Doutrina. Precedentes.
DECISÃO: Trata-se de ação direta de
inconstitucionalidade, ajuizada pelo Governador do Estado do Piauí, com o
objetivo de impugnar a validade jurídico-constitucional dos arts. 2º, “caput” e
inciso V, 5º, 62 e 158 da Lei Complementar nº 2/1990; dos arts. 4º, § 2º, e 58
da Lei Complementar nº 3/1990; dos arts. 12, 17, e 28 da Lei Complementar nº
4/1990, todas editadas por essa unidade da Federação.
O eminente Procurador-Geral da República, em seu douto
parecer (fls. 264/269), pronunciou-se pela extinção deste processo de controle
normativo abstrato, fazendo-o em parecer que tem, no ponto, a seguinte
fundamentação (fls. 267/269):
“6. Preliminarmente, verifica-se a
prejudicialidade da ação quanto à impugnação a) dos artigos 2º, ‘caput’; e 62,
da Lei Complementar nº 02/1990; b) dos artigos 4º, § 2º e 58, da Lei
Complementar nº 03/1990; e, finalmente, c) do artigo 17, da Lei Complementar nº
04/1990 – que foram substancialmente alterados pelas Leis Complementares
Estaduais nº 09/1992, nº 11/1993 e nº 12/1993.
7. No tocante ao art. 5º, da Lei Complementar nº
02/1990, também impugnado na presente ação, cumpre esclarecer que a norma nele
inserta – que submetia à apreciação do Poder Legislativo a proposta orçamentária
do Ministério Público – restou tacitamente revogada, porquanto não foi
reproduzida na Lei Complementar nº 12/1993, que passou a estabelecer as normas
de organização e funcionamento do Ministério Público do Estado do Piauí.
8.
A presente ação direta também se encontra prejudicada
quanto à impugnação do inciso V, do art 2º, da Lei Complementar nº 02/1990, uma
vez que o parâmetro de constitucionalidade supostamente violado, o § 2º do art.
127 da Constituição Federal, sofreu alteração substancial em seu conteúdo com o
advento da Emenda Constitucional nº 19, de 5 de junho de 1998, passando a
vigorar com a seguinte redação:
‘Art. 127 (…)
§ 2º Ao Ministério Público é assegurada autonomia
funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no art. 129, propor
ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares,
provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política
remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e
funcionamento.’
9. O mesmo se verifica quanto à impugnação do
art. 28, da Lei Complementar nº 04/1990, pois a norma inserta no artigo 93, VI,
da Constituição Federal, supostamente violada, também foi substancialmente
alterada com a edição da Emenda Constitucional nº 20, de 16 de dezembro de
1998, tornando inviável o controle concentrado da norma em face desse
dispositivo constitucional.
10. Quanto à impugnação da expressão ‘e
remuneração’ contida no art. 12, da LC nº 04/1990, cumpre, inicialmente,
esclarecer que, embora este artigo tenha sido alterado pela LC nº 09/1992, a
expressão impugnada foi mantida, razão pela qual não se verifica prejudicado o
pedido quanto a esse dispositivo. Eis o teor do dispositivo ora em vigor:
‘Art. 12 – O Advogado Geral do Estado é o Chefe
da Advocacia Geral do Estado e da Procuradoria Geral do Estado, com
prerrogativas e remuneração de Secretário de Estado, nomeado em comissão pelo
Governador, dentre maiores de trinta anos, de notório saber jurídico e
reputação ilibada.’ (…).
11. Verifica-se, entretanto, que não
merece ser conhecida a ação quanto à impugnação do artigo 12 da Lei
Complementar nº 04/1990, porquanto não expôs o requerente os fundamentos
jurídicos do pedido com relação ao mencionado dispositivo infraconstitucional,
limitando-se a transcrevê-lo sem sequer apontar a norma constitucional
supostamente violada.
12. Ante o exposto, manifesta-se o Ministério
Público Federal pelo não-conhecimento da ação quanto à impugnação do artigo 12,
da Lei Complementar nº 04/1990; e, em relação aos demais dispositivos
hostilizados, pela prejudicialidade da presente ação direta de
inconstitucionalidade.” (grifei)
Sendo esse o contexto, entendo aplicável, à
espécie, o magistério jurisprudencial desta Suprema Corte, cujas reiteradas
decisões, no tema, têm reconhecido a ocorrência de prejudicialidade da ação
direta, quando, após o seu ajuizamento, sobrevém a cessação de eficácia das
normas questionadas em referido processo objetivo, como sucedeu, no caso, com o
art. 5º da Lei Complementar estadual nº 02/90.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a
propósito de tal situação, tem enfatizado que a superveniente cessação de
eficácia dos atos estatais impugnados em ação direta de inconstitucionalidade
provoca a extinção anômala do processo de controle normativo abstrato,
independentemente da existência de efeitos residuais concretos que possam ter
derivado da aplicação dos diplomas questionados (RTJ 153/13 – RTJ 154/396-397 –
RTJ 154/401 – RTJ 156/29 – RTJ 160/145 – RTJ 174/80-81, v.g.):
“- A cessação superveniente da eficácia da lei
argüída de inconstitucional inibe o prosseguimento da ação direta de
inconstitucionalidade (…).
- A extinção anômala do processo de controle
normativo abstrato, motivada pela perda superveniente de seu objeto, tanto pode
decorrer da revogação pura e simples do ato estatal impugnado, como do
exaurimento de sua eficácia, tal como sucede nas hipóteses de normas legais
destinadas à vigência temporária.”
(RTJ 152/731-732, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
“A revogação superveniente do ato estatal
impugnado faz instaurar situação de prejudicialidade que provoca a extinção
anômala do processo de fiscalização abstrata de constitucionalidade, eis que a
ab-rogação do diploma normativo questionado opera, quanto a ele, a sua exclusão
do sistema de direito positivo, causando, desse modo, a perda ulterior de
objeto da própria ação direta, independentemente da ocorrência, ou não, de
efeitos residuais concretos.”
(RTJ 195/752-754, 754, Rel. Min. CELSO DE
MELLO)
Também tem razão o eminente Procurador-Geral da
República, quando acentua a prejudicialidade desta ação direta em decorrência
de substancial alteração introduzida pela superveniente promulgação das Emendas
Constitucionais nºs 19/98 e 20/98, cujo teor modificou o próprio parâmetro de controle
alegadamente transgredido – segundo sustenta o autor – pelos diplomas
legislativos em questão.
Tratando-se de fiscalização normativa abstrata, a
questão pertinente à noção conceitual de parametricidade – vale dizer, do
atributo que permite outorgar, à cláusula constitucional, a qualidade de
paradigma de controle – desempenha papel de fundamental importância na
admissibilidade, ou não, da própria ação direta (ou da ação declaratória de
constitucionalidade), consoante já enfatizado pelo Plenário do Supremo Tribunal
Federal (RTJ 176/1019-1020, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Isso significa, portanto, que a idéia de
inconstitucionalidade (ou de constitucionalidade), por encerrar um conceito de
relação (JORGE MIRANDA, “Manual de Direito Constitucional”, tomo II, p.
273/274, item n. 69, 2ª ed., Coimbra Editora Limitada) – que supõe, por isso
mesmo, o exame da compatibilidade vertical de um ato, dotado de menor
hierarquia, com aquele que se qualifica como fundamento de sua existência,
validade e eficácia – torna essencial, para esse específico efeito, a
identificação do parâmetro de confronto, que se destina a possibilitar a
verificação, “in abstracto”, da legitimidade constitucional de certa regra de
direito positivo, a ser necessariamente cotejada em face da cláusula invocada
como referência paradigmática.
A busca do paradigma de confronto,
portanto, significa, em última análise, a procura de um padrão de cotejo que
permita, ao intérprete, o exame da fidelidade hierárquico-normativa de
determinado ato estatal, contestado em face da Constituição.
Sendo assim, e quaisquer que possam ser os
parâmetros de controle que se adotem – a Constituição escrita, de um lado, ou a
ordem constitucional global, de outro (LOUIS FAVOREU/FRANCISCO RUBIO LLORENTE,
“El bloque de la constitucionalidad”, p. 95/109, itens ns. I e II, 1991,
Civitas; J. J. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional”, p. 712, 4ª ed., 1987,
Almedina, Coimbra, v.g.) -, torna-se essencial, para fins de viabilização do
processo de controle normativo abstrato, que tais referências paradigmáticas
encontrem-se, ainda, em regime de plena vigência, pois, como precedentemente
assinalado, o controle de constitucionalidade, em sede concentrada, não se
instaura, em nosso sistema jurídico, em função de paradigmas históricos,
consubstanciados em normas que já não mais se acham em vigor, ou, embora
vigendo, tenham sofrido alteração substancial em seu texto.
É por tal razão que, em havendo a revogação
superveniente (ou a modificação substancial) da norma de confronto, não mais se
justificará a tramitação do processo objetivo de fiscalização concentrada de
constitucionalidade.
Bem por isso, a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, desde o regime constitucional anterior, tem proclamado que
tanto a superveniente revogação global da Constituição da República (RTJ
128/515 – RTJ 130/68 – RTJ 130/1002 – RTJ 135/515 – RTJ 141/786), quanto a
posterior derrogação (ou alteração substancial) da norma constitucional (RTJ
168/436 – RTJ 169/834 – RTJ 169/920 – RTJ 171/114 – RTJ 172/54-55 – RTJ 179/419
– ADI 296/DF – ADI 595/ES – ADI 905/DF – ADI 906/PR – ADI 1.120/PA – ADI
1.137/RS – ADI 1.143/AP – ADI 1.300/AP – ADI 1.510/SC – ADI 1.885-QO/DF), por
afetarem o paradigma de confronto invocado no processo de controle concentrado
de constitucionalidade, configuram hipóteses caracterizadoras de
prejudicialidade da ação direta ou da ação declaratória, em virtude da evidente
perda de seu objeto:
“II – Controle direto de constitucionalidade:
prejuízo.
Julga-se prejudicada, total ou parcialmente, a
ação direta de inconstitucionalidade no ponto em que, depois de seu
ajuizamento, emenda à Constituição haja abrogado ou derrogado norma de Lei
Fundamental que constituísse paradigma necessário à verificação da procedência
ou improcedência dela ou de algum de seus fundamentos, respectivamente:
orientação de aplicar-se no caso, no tocante à alegação de
inconstitucionalidade material, dada a revogação primitiva do art. 39, § 1º, CF
88, pela EC 19/98.”
(RTJ 172/789-790, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE –
grifei)
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI
ESTADUAL 3310/99. COBRANÇA DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA DE INATIVOS E
PENSIONISTAS. EC 41/2003. ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DO SISTEMA PÚBLICO DE
PREVIDÊNCIA. PREJUDICIALIDADE.
………………………………………………
2. Superveniência da Emenda Constitucional
41/2003, que alterou o sistema previdenciário. Prejudicialidade da ação direta
quando se verifica inovação substancial no parâmetro constitucional de aferição
da regra legal impugnada. Precedentes.
Ação direta de inconstitucionalidade julgada
prejudicada.”
(ADI 2.197/RJ, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA –
grifei)
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
INSTRUMENTO DE AFIRMAÇÃO DA SUPREMACIA DA ORDEM CONSTITUCIONAL. O PAPEL DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO LEGISLADOR NEGATIVO. A NOÇÃO DE
CONSTITUCIONALIDADE/INCONSTITUCIONALIDADE COMO CONCEITO DE RELAÇÃO. A QUESTÃO
PERTINENTE AO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE. POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS DIVERGENTES EM TORNO DO SEU
CONTEÚDO. O SIGNIFICADO DO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE COMO FATOR DETERMINANTE
DO CARÁTER CONSTITUCIONAL, OU NÃO, DOS ATOS ESTATAIS. NECESSIDADE DA VIGÊNCIA
ATUAL, EM SEDE DE
CONTROLE ABSTRATO, DO PARADIGMA CONSTITUCIONAL ALEGADAMENTE
VIOLADO. SUPERVENIENTE MODIFICAÇÃO/SUPRESSÃO DO PARÂMETRO DE CONFRONTO.
PREJUDICIALIDADE DA AÇÃO DIRETA.
- A definição do significado de bloco de
constitucionalidade – independentemente da abrangência material que se lhe
reconheça – reveste-se de fundamental importância no processo de fiscalização
normativa abstrata, pois a exata qualificação conceitual dessa categoria
jurídica projeta-se como fator determinante do caráter constitucional, ou não,
dos atos estatais contestados em face da Carta Política.
- A superveniente alteração/supressão das normas,
valores e princípios que se subsumem à noção conceitual de bloco de
constitucionalidade, por importar em descaracterização do parâmetro
constitucional de confronto, faz instaurar, em sede de controle abstrato,
situação configuradora de prejudicialidade da ação direta, legitimando, desse
modo – ainda que mediante decisão monocrática do Relator da causa (RTJ 139/67)
– a extinção anômala do processo de fiscalização concentrada de
constitucionalidade. Doutrina. Precedentes.”
(ADI 595/ES, Rel. Min. CELSO DE MELLO,
“Informativo/STF” nº 258/2002)
Cumpre ressaltar, por necessário, que essa
orientação jurisprudencial reflete-se no próprio magistério da doutrina
(CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, “A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no
Direito Brasileiro”, p. 225, item n. 3.2.6, 2ª ed., 2000, RT; OSWALDO LUIZ
PALU, “Controle de Constitucionalidade – Conceitos, Sistemas e Efeitos”, p.
219, item n. 9.9.17, 2ª ed., 2001, RT; GILMAR FERREIRA MENDES, “Jurisdição
Constitucional”, p. 176/177, 2ª ed., 1998, Saraiva), cuja percepção do tema ora
em exame põe em destaque, em casos como o destes autos, que a superveniente
alteração da norma constitucional revestida de parametricidade importa na
configuração de prejudicialidade do processo de controle abstrato de
constitucionalidade, eis que, como enfatizado, o objeto do processo de
fiscalização abstrata resume-se, em essência, ao controle da integridade da
ordem constitucional vigente.
Vê-se, desse modo, que a promulgação das Emendas
Constitucionais nºs 19/98 e 20/98, ocorrida em momento posterior ao do
ajuizamento da presente ação direta, importou em alteração substancial das
cláusulas de parâmetro invocadas para justificar a instauração deste processo
de controle normativo abstrato, ensejando, assim, o reconhecimento – tal como
preconizado pelo eminente Procurador-Geral da República – de uma típica
situação caracterizadora de prejudicialidade apta a gerar a extinção anômala
desta causa.
Resta verificar, agora, se se revela viável,
processualmente, a impugnação genérica deduzida contra o art. 12 da Lei
Complementar nº 04/90, editada pelo Estado do Piauí.
O eminente Procurador-Geral da República, ao
opinar pelo não-conhecimento desta ação direta quanto a referido preceito
normativo, enfatizou, com razão, que o autor, ao deduzir a sua pretensão de
inconstitucionalidade, “não expôs (…) os fundamentos jurídicos do pedido com
relação ao mencionado dispositivo infraconstitucional, limitando-se a
transcrevê-lo, sem sequer apontar a norma constitucional supostamente violada”
(grifei).
Cumpre ter presente, neste ponto, considerado o
que dispõe o art. 3o, I, da Lei nº 9.868/99, que não se conhece da ação direta,
sempre que a impugnação nela deduzida revelar-se destituída de fundamentação
jurídica, tal como ocorre, no caso, em relação ao art. 12, “caput”, da Lei
Complementar nº 04/90.
Cabe ressaltar, na linha da jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal, que nada pode justificar uma alegação meramente
genérica de ofensa à Constituição, pois incumbe, a quem faz tal afirmação, o
dever de indicar, fundamentadamente, as razões justificadoras do suposto vício
de inconstitucionalidade.
O Senhor Governador do Estado do Piauí, ao
pretender a decretação de inconstitucionalidade do “caput” do art. 12 da Lei
Complementar nº 04/90, deixou de fundamentar tal argüição.
Ao compulsar-se a petição inicial (fls. 02/21),
constata-se que o autor simplesmente não expôs qualquer fundamento jurídico que
desse suporte à tese da inconstitucionalidade material do “caput” do art. 12 da
Lei Complementar nº 04/90.
É certo que o Supremo Tribunal Federal não está
condicionado, no desempenho de sua atividade jurisdicional, pelas razões de
ordem jurídica invocadas como suporte da pretensão de inconstitucionalidade
deduzida pelo autor da ação direta. Tal circunstância, no entanto, não suprime,
à parte, o dever processual de motivar o pedido e de identificar, na
Constituição, em obséquio ao princípio da especificação das normas, os
dispositivos alegadamente violados pelo ato normativo que pretende impugnar.
Impõe-se, ao autor, no processo de controle concentrado de constitucionalidade,
indicar as normas de referência – que são aquelas inerentes ao ordenamento
constitucional e que se revestem, por isso mesmo, de parametricidade – em ordem
a viabilizar, com apoio em argumentação consistente, a aferição da conformidade
vertical dos atos normativos de menor hierarquia.
Quaisquer que possam ser os parâmetros de
controle que se adotem – a Constituição escrita ou a ordem constitucional
global (J. J. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional”, p. 712, 4a ed., 1987,
Almedina, Coimbra) -, não pode o autor deixar de referir, para os efeitos
mencionados, quais as normas, quais os princípios e quais os valores efetiva ou
potencialmente lesados por atos estatais revestidos de menor grau de
positividade jurídica, sempre indicando, ainda, os fundamentos, a serem
desenvolvidamente expostos, subjacentes à argüição de
inconstitucionalidade.
Esse dever de fundamentar a argüição de
inconstitucionalidade onera e incide sobre aquele que faz tal afirmação,
assumindo, por isso mesmo, um caráter de indeclinável observância (ADI 561/DF,
Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Não cabe, desse modo, ao Supremo Tribunal
Federal, substituindo-se ao autor, suprir qualquer omissão que se verifique na
petição inicial. Isso porque a natureza do processo de ação direta de
inconstitucionalidade, que se revela instrumento de grave repercussão na ordem
jurídica interna, impõe maior rigidez no controle dos seus pressupostos formais
(RTJ 135/19, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RTJ 135/905, Rel. Min. CELSO DE
MELLO).
A magnitude desse excepcional meio de ativação da
jurisdição constitucional concentrada do Supremo Tribunal Federal impõe e
reclama, até mesmo para que não se degrade em sua importância, uma atenta
fiscalização desta Corte, que deve impedir que o exercício de tal prerrogativa
institucional, em alguns casos, venha a configurar instrumento de instauração
de lides constitucionais temerárias.
A omissão do autor – que deixou de indicar as
razões consubstanciadoras da alegada ilegitimidade constitucional do “caput” do
art. 12 da Lei Complementar nº 04/90 – faz com que essa conduta processual
incida na restrição fixada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que
não admite argüições de inconstitucionalidade, quando destituídas de
fundamentação ou desprovidas de motivação específica e suficientemente
desenvolvida.
Considerada a jurisprudência desta Suprema Corte
– que deu causa à formulação da regra inscrita no art. 3o, I, da Lei nº
9.868/99 -, não se pode conhecer de ação direta, sempre que a impugnação nela
veiculada, como ocorre na espécie, revelar-se destituída de fundamentação ou
quando a argüição de inconstitucionalidade apresentar-se precária ou
insuficientemente motivada.
A gravidade de que se reveste o instrumento de
controle normativo abstrato impõe, àquele que possui legitimidade para
utilizá-lo, o dever processual de sempre expor, de modo suficientemente
desenvolvido, as razões jurídicas justificadoras da alegação de
inconstitucionalidade.
É que, em sede de fiscalização concentrada, não
se admite afirmação meramente genérica de inconstitucionalidade, tanto quanto
não se permite que a alegação de contrariedade ao texto constitucional se apóie
em argumentos superficiais ou em fundamentação insuficiente.
Essa orientação tem prevalecido, em tema de
fiscalização normativa abstrata, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,
que, por mais de uma vez, deixou de conhecer de ações diretas, seja por falta
de motivação específica, seja por insuficiência ou deficiência da própria
fundamentação (RTJ 177/669, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – ADI 561/DF, Rel. Min.
CELSO DE MELLO – ADI 2.111/DF, Rel. Min. SYDNEY SANCHES):
“É necessário, em ação direta de
inconstitucionalidade, que venham expostos os fundamentos jurídicos do pedido
com relação às normas impugnadas, não sendo de admitir-se alegação genérica de
inconstitucionalidade sem qualquer demonstração razoável, nem ataque a quase
duas dezenas de medidas provisórias em sua totalidade com alegações por
amostragem.”
(RTJ 144/690, Rel. Min. MOREIRA ALVES –
grifei)
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – CAUSA DE
PEDIR E PEDIDO – Cumpre ao autor da ação proceder à abordagem, sob o ângulo da
causa de pedir, dos diversos preceitos atacados, sendo impróprio fazê-lo de
forma genérica. A flexibilidade jurisprudencial de autora não mais se
justifica, isso diante do elastecimento constitucional do rol dos legitimados
para a referida ação.”
(ADI 1.708/MT, Rel. Min. MARCO AURÉLIO –
grifei)
“Insuficiência de fundamentação da inicial dado o
número de dispositivos legais alterados pela Medida Provisória, sem que se
particularize, pontualmente, como convém, a motivação a justificar a declaração
de sua invalidade. Ação direta de inconstitucionalidade não conhecida, por
falta de motivação específica quanto à pretendida declaração de
inconstitucionalidade.”
(RTJ 173/466, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA –
grifei)
Nem se diga que, em ocorrendo situação como a ora
exposta, impor-se-ia ao Tribunal o dever de ensejar, ao autor, a possibilidade
de complementar a petição inicial.
Tal providência não se revela processualmente
viável, porque a Lei nº 9.868/99 – que dispõe sobre o processo e o julgamento
da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de
constitucionalidade – estabelece que a ausência de fundamentação autoriza o
indeferimento liminar da petição inicial, por ocorrência do vício grave da
inépcia.
Na realidade, a Lei nº 9.868/99, ao dispor sobre
essa conseqüência de ordem processual, assim prescreve em seu art. 4º, “caput”:
“A petição inicial inepta, não fundamentada e a manifestamente improcedente
serão liminarmente indeferidas pelo relator” (grifei).
Cabe ter presente, no ponto, no sentido desta
decisão, o julgamento plenário da ADI 1.775/RJ, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA (RTJ
177/669), na parte em que esta Corte afastou a proposta de que se deveria
ensejar, ao autor, a oportunidade de aditar a petição inicial, quando
deficientemente fundamentada.
Sendo assim, e presentes tais razões, não conheço
desta ação direta, no ponto em que, sem qualquer fundamentação, o autor
questionou a constitucionalidade do “caput” do art. 12 da Lei Complementar nº
04/90, julgando-a prejudicada, de outro lado, no que concerne aos demais
preceitos normativos que foram impugnados nesta sede de controle abstrato.
A inviabilidade da presente ação direta, em
decorrência das razões mencionadas, impõe uma observação final: no desempenho
dos poderes processuais de que dispõe, assiste, ao Ministro-Relator,
competência plena para exercer, monocraticamente, o controle das ações, pedidos
ou recursos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal, legitimando-se, em
conseqüência, os atos decisórios que, nessa condição, venha a praticar.
Cabe acentuar, neste ponto, que o Pleno do
Supremo Tribunal Federal reconheceu a inteira validade constitucional da norma
legal que inclui, na esfera de atribuições do Relator, a competência para negar
trânsito, em decisão monocrática, a recursos, pedidos ou ações, quando
incabíveis, inviáveis, intempestivos, sem objeto ou que veiculem pretensão incompatível
com a jurisprudência predominante do Tribunal (RTJ 139/53 – RTJ
168/174-175).
Impõe-se enfatizar, por necessário, que esse
entendimento jurisprudencial é também aplicável aos processos de ação direta de
inconstitucionalidade (ADI 563/DF, Rel. Min. PAULO BROSSARD – ADI 593/GO, Rel.
Min. MARCO AURÉLIO – ADI 2.060/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO – ADI 2.207/AL,
Rel. Min. CELSO DE MELLO – ADI 2.215/PE, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), eis
que, tal como já assentou o Plenário do Supremo Tribunal Federal, o ordenamento
positivo brasileiro “não subtrai, ao Relator da causa, o poder de efetuar –
enquanto responsável pela ordenação e direção do processo (RISTF, art. 21, I) –
o controle prévio dos requisitos formais da fiscalização normativa abstrata, o
que inclui, dentre outras atribuições, o exame dos pressupostos processuais e
das condições da própria ação direta” (RTJ 139/67, Rel. Min. CELSO DE
MELLO).
Sendo assim, em face das razões expostas, e
acolhendo, ainda, o parecer do eminente Procurador-Geral da República, não
conheço da presente ação direta quanto ao art. 12 da Lei Complementar nº 04/90
do Estado do Piauí, julgando-a prejudicada no que se refere aos demais
preceitos normativos ora questionados. Em conseqüência, declaro extinto este
processo de controle normativo abstrato, restando insubsistente a medida
cautelar anteriormente deferida (fls. 61/110).
Comunique-se, após o trânsito em julgado da
presente decisão.
Arquivem-se os presentes autos.
Publique-se.
Brasília, 24 de março de 2008.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator