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sábado, 26 de novembro de 2011

Federalização dos crimes contra os direitos humanos


Federalização dos crimes contra os direitos humanos


 A Emenda Constitucional nº 45, que reformou parcialmente o Judiciário brasileiro, foi promulgada em dezembro de 2004 e, desde então, tem rendido várias e boas polêmicas. Uma das mais interessantes diz respeito ao incidente de deslocamento de competência, instituto criado por meio da introdução de um novo inciso e de um novo parágrafo ao artigo 109 da Constituição Federal, que cuida da competência dos juízes federais.

            Com efeito, o artigo 109, inciso V-A, passou a prever que também compete aos juízes federais processar e julgar "as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo". E o parágrafo 5º estatui:

            "§5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal".

Falar-se em “federalização” dos crimes contra os direitos humanos pode suscitar desde logo um questionamento: afinal, em nosso sistema jurídico, já não são, por expressa previsão constitucional, federais todos os crimes, à medida em que só por lei emanada da União podem ser editadas normas de direito criminal (art. 22, I da CF)?

De fato, desde a Constituição de 1891 vigora entre nós a unidade do direito substantivo, inclusive, portanto, do direito penal. Por outro lado, porém, aquela mesma Constituição, ao consagrar dois sistemas judiciários distintos – a Justiça federal e as Justiças estaduais – outorgou à primeira uma jurisdição restrita, restando em contrapartida reconhecida para as Justiças dos Estados-membros uma ampla competência para o julgamento de causas fundadas no direito federal, aí incluído o julgamento do grosso das ações criminais. Esse modelo, em sua essência, vigora ainda hoje.

Desse modo, embora as violações de direitos humanos configurem infrações ao direito federal, o que se tem visto até hoje é que, via de regra, a competência para seu julgamento é reconhecida às Justiças dos Estados. Isso equivale a dizer que é também estadual a competência para a apuração policial de tais fatos, além de incumbir por igual ao respectivo Ministério Púbico local a persecução penal desses delitos.

Ora, quando se fala em “crimes contra os direitos humanos” naturalmente está a se considerar aquelas infrações mais graves, que atentam contra direitos humanos não apenas garantidos na Constituição e leis federais, mas, também, por sua especial relevância, consagrados em instrumentos internacionais, como convenções e tratados, a cuja observância o Brasil encontra-se vinculado.

Pois bem, o que se verifica é que em tais casos, muito freqüentemente, as violações mais sérias são perpetradas justamente por indivíduos pertencentes ao aparato de segurança dos Estados-membros, ou então graças à omissão das autoridades estaduais. É o que demonstram seguidos relatórios da ONU e de outras respeitadas entidades nacionais e internacionais, os quais apontam o freqüente envolvimento de agentes estaduais na perpetração de graves crimes, como tortura, execuções sumárias ou homicídios praticados por grupos de extermínio, delitos estes que na grande maioria dos casos permanecem impunes.

Além da existência de um interesse preponderantemente federal em jogo, evidentemente mostra-se mais razoável que a persecução penal nesses casos fique aos cuidados de autoridades federais, mais descomprometidas e mais protegidas em face dos fatores locais de poder freqüentemente envolvidos em tais episódios. Considere-se ainda que é por meio de órgãos da União que a República Federativa do Brasil responde, nos fóruns internacionais, pelas violações perpetradas contra os direitos humanos em nosso país.

Foi por tais motivos que a recente reforma do Poder Judiciário, consubstanciada na E.C. n° 45, acrescentou um novo parágrafo ao art. 109 da Constituição, com a seguinte redação: "§ 5° Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral? da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal".

Há quem vislumbre na nova previsão constitucional uma ofensa a cláusulas pétreas da Constituição Federal, como o princípio federal e a regra do juiz natural. Pode-se afirmar, contudo, que a Justiça Federal de primeiro grau é, na verdade, o juízo natural dos casos que versem sobre graves violações a direitos humanos protegidos por instrumentos internacionais subscritos pelo Brasil. Todo aquele que perpetre crimes dessa natureza está, desde o momento do delito, sujeito à jurisdição imediata da Justiça federal, dado o evidente interesse da União na persecução de tais crimes. Se, não obstante, a persecução penal for instaurada perante a Justiça estadual, cabível será o deslocamento de competência previsto no § 5° do art. 109 da C.F. Na verdade, o Incidente de Deslocamento de Competência, em última análise, pode ser visto como mero instrumento processual instituído pela E.C. n° 45 para fazer valer, de modo mais efetivo, no que tange às violações dos direitos humanos, o que já estava disposto no inc. IV do art. 109 da mesma Constituição, que dispõe ser da competência dos juízes federais o processo e julgamento das “infrações penais praticadas em detrimento de ... interesses da União”.

Desse modo, com vistas a que melhor sejam cumpridos os desígnios constitucionais, o Incidente de Deslocamento de Competência deve ser reconhecido como meio para combater, em especial, as graves e recorrentes violações a direitos humanos fundamentais perpetradas por agentes estaduais, que deveriam justamente garantir a incolumidade de tais direitos, assim como aqueles crimes contra os direitos humanos praticados graças à conivência ou deliberada omissão desses mesmos órgãos estaduais, sempre que não for o caso de, pura e simplesmente, proceder-se à intervenção federal no Estado-membro para garantir a observância dos direitos humanos (art. 34, VII, b da C.F.), medida esta de caráter mais drástico, que, de acordo com a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal na IF-114, mostra-se cabível em caso de ocorrência de violações generalizadas aos direitos humanos no âmbito de determinada unidade da Federação.

Ainda é cedo para saber se o incidente de deslocamento de competência estabelecido pela E.C. n° 45 irá se converter em instrumento efetivo de proteção dos direitos humanos em nosso país. Mas é certo que a eventual inviabilização dessa via terá o significado, na prática, de tornar as brutais e impunes violações dos direitos humanos no Brasil assunto da exclusiva alçada de organismos internacionais, com os constrangimentos aí decorrentes.

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